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Artigo N.º 13369 - O que a Igreja Católica pensa sobre a “Teologia da Libertação”?
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Postado em: 26/05/15 às 09:51:28 por: James
Categoria: Saiba Mais
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Teologia da Libertação

O Assunto: O Cardeal Joseph Ratzinger, depois Papa Bento XVI, quando Prefeito da S. Congregação para a Doutrina da Fé, escreveu uma exposição sobre a Teologia da Libertação em sua forma extremada, em 18/03/84; partindo das respectivas premissas e realçando os conceitos característicos do sistema, o autor mostra que a Teologia da Libertação não trata apenas de desenvolver a ética social cristã em vista da situação socioeconômica da América Latina, mas revolve todos as concepções do Cristianismo: doutrina da fé, constituição da igreja, liturgia, catequese, opções morais, etc. É de crer que “a gravidade da Teologia da Libertação não seja avaliada de modo suficiente; não entra em nenhum esquema de heresia até hoje existente”; é a subversão radical do Cristianismo, que torna urgente “o problema do que se possa e se deva fazer frente a ela”. É importante que o público esteja consciente de que a Teologia da Libertação não é a extensão das promessas do Cristianismo aos problemas morais suscitados pelas condições socioeconômicas da América Latina, mas é uma nova versão do racionalismo de Rudolf Bultmann e do marxismo, que utiliza a linguagem dogmática e ascética do patrimônio antigo da fé e se reveste de aspectos de mística cristã. O Cardeal Joseph Ratzinger fez uma explanação do que é a Teologia da Libertação. Tal documento é de notável importância, pois deriva de um sábio teólogo encarregado, em Roma, precisamente da Congregação que acompanha a fé e os desvios da fé em nossos dias.

***

Introdução

Para esclarecer a minha tarefa e a minha intenção, com relação ao tema, parecem-me necessárias algumas observações preliminares:

1) A teologia da libertação é fenômeno extraordinariamente complexo. É possível formar-se um conceito da teologia da libertação segundo o qual ela vai das posições mais radicalmente marxistas até aquelas que propõem o lugar apropriado da necessária responsabilidade do cristão para com os pobres e os oprimidos no contexto de uma correta teologia eclesial, como fizeram os documentos do CELAM, de Medellin e Puebla.

Neste nosso texto, usaremos o conceito “teologia da libertação” em sentido mais restrito: sentido que compreende apenas aqueles teólogos que, de algum modo, fizeram própria a opção fundamental marxista. Mesmo aqui existem, nos particulares, muitas diferenças que é impossível aprofundar nesta reflexão geral. Neste contexto, posso apenas tentar pôr em evidência algumas linhas fundamentais que, sem desconhecer as diversas matrizes, são muito difundidas e exercem certa influência mesmo onde não existe teologia da libertação em sentido estrito.

2) Com a análise do fenômeno da teologia da libertação torna-se manifesto um perigo fundamental para a fé da Igreja. Sem dúvida, é preciso ter presente que um erro não pode existir se não contém um núcleo de verdade. De fato, um erro é tanto mais perigoso quanto maior for a proporção do núcleo de verdade assumida. Além disso, o erro não se poderia apropriar daquela parte de verdade, se essa verdade fosse suficientemente vivida e testemunhada ali onde é o seu lugar, isto é, na fé da Igreja. Por isso, ao lado da demonstração do erro e do perigo da teologia da libertação, é preciso sempre acrescentar a pergunta: que verdade se esconde no erro e como recuperá-la plenamente?

3) A teologia da libertação é um fenômeno universal sob três pontos de vista:

a) Essa teologia não pretende constituir-se como um novo tratado teológico ao lado dos outros já existentes; não pretende, por exemplo, elaborar novos aspectos da ética social da Igreja. Ela se concebe, antes, como uma nova hermenêutica da fé cristã, quer dizer, como nova forma de compreensão e de realização do cristianismo na sua totalidade. Por isto mesmo muda todas as formas da vida eclesial: a constituição eclesiástica, a liturgia, a catequese, as opções morais;

b) A teologia da libertação tem certamente o seu centro de gravidade na América Latina, mas não é, de modo algum, fenômeno exclusivamente latino-americano. Não se pode pensá-la sem a influência determinante de teólogos europeus e também norte-americanos. Além do mais, existe também na Índia, no Sri Lanka, nas Filipinas, em Taiwan, na África – embora nesta última esteja em primeiro plano a busca de uma “teologia africana”. A união dos teólogos do Terceiro Mundo é fortemente caracterizada pela atenção prestada aos temas da teologia da libertação;

c) A teologia da libertação supera os limites confessionais. Um dos mais conhecidos representantes da teologia da libertação, Hugo Assman, era sacerdote católico e ensina hoje como professor em uma Faculdade protestante, mas continua a se apresentar com a pretensão de estar acima das fronteiras confessionais. A teologia da libertação procura criar, já desde as suas premissas, uma nova universalidade em virtude da qual as separações clássicas da Igreja devem perder a sua importância.

O Conceito de Teologia da Libertação e os Pressupostos de sua Gênese

Essas observações preliminares, entretanto, já nos introduziram no núcleo do tema. Deixam aberta, porém, a questão principal: o que é propriamente a teologia da libertação? Em uma primeira tentativa de resposta, podemos dizer: a teologia da libertação pretende dar nova interpretação global do Cristianismo; explica o Cristianismo como uma práxis de libertação e pretende constituir-se, ela mesma, um guia para tal práxis. Mas assim como, segundo essa teologia, toda realidade é política, também a libertação é um conceito político e o guia rumo à libertação deve ser um guia para a ação política.

“Nada resta fora do empenho político. Tudo existe com uma colocação política” (Gutierrez). Uma teologia que não seja “prática (o que significa dizer “essencialmente política”) é considerada “idealista” e condenada como irreal ou como veículo de conservação dos opressores no poder. Para um teólogo que tenha aprendido a sua teologia na tradição clássica e que tenha aceitado a sua vocação espiritual, é difícil imaginar que seriamente se possa esvaziar a realidade global do Cristianismo em um esquema de práxis sócio-político de libertação. A coisa é, entretanto, mais difícil, já que os teólogos da libertação continuam a usar grande parte da linguagem ascética e dogmática da Igreja em chave nova, de tal modo que aqueles que lêem e que escutam partindo de outra visão, podem ter a impressão de reencontrar o patrimônio antigo com o acréscimo apenas de algumas afirmações um pouco estranhas, mas que, unidos a tanta religiosidade, não poderiam ser tão perigosas. Exatamente a radicalidade da teologia da libertação faz com que a sua gravidade não seja avaliada de modo suficiente; não entra em nenhum esquema de heresia até hoje existente. A sua colocação, já de partida, situa-se fora daquilo que pode ser colhido pelos tradicionais sistemas de discussão. Por isto tentarei abordar a orientação fundamental da teologia da libertação em duas etapas: primeiramente é necessário dizer algo acerca dos pressupostos que a tornaram possível; a seguir, desejo aprofundar alguns dos conceitos base que permitem conhecer algo da estrutura da teologia da libertação. Como se chegou a esta orientação completamente nova do pensamento teológico, que se exprime na teologia da libertação? Vejo principalmente três fatores que a tornaram possível.

1) Após o Concílio, produziu-se uma situação teológica nova:

a) Surgiu a opinião de que a tradição teológica existente até então não era mais aceitável e, por conseguinte, se deviam procurar, a partir da Escritura e dos sinais dos tempos, orientações teológicas e espirituais totalmente novas;

b) A idéia de abertura ao mundo e de compromisso no mundo transformou-se frequentemente em uma fé ingênua nas ciências; uma fé que acolheu as ciências humanas como um novo evangelho, sem querer reconhecer os seus limites e problemas próprios. A psicologia, a sociologia e a interpretação marxista da história foram considerados como cientificamente seguras e, a seguir, como instâncias não mais contestáveis no pensamento cristão;

c) A crítica da tradição por parte da exegese evangélica moderna, especialmente a de Bultmann e da sua escola, tornou-se uma instância teológica inamovível que barrou a estrada às formas até então válidas da teologia, encorajando, assim, também novas construções.

2) A situação teológica assim transformada coincidiu com uma situação da história espiritual também ela modificada. Ao final da fase de reconstrução após a segunda guerra mundial, fase que coincidiu pouco mais ou menos com o término do Concílio, produziu-se no mundo ocidental um sensível vazio de significado, ao qual a filosofia existencialista ainda em voga não estava em condições de dar alguma resposta. Nesta situação, as diferentes formas do neomarxismo transformaram-se em um impulso moral e, ao mesmo tempo, em uma promessa de significado que parecia quase irresistível à juventude universal. O marxismo, com as acentuações religiosas de Bloch e as filosofias dotadas de rigor científico de Adorno, Harkheimer, Habernas e Marcuse, ofereceram modelos de ação com os quais alguns pensadores acreditavam poder responder ao desafio da miséria no mundo e, ao mesmo tempo, poder atualizar o sentido correto da mensagem bíblica.

3) O desafio moral da pobreza e da opressão não podia mais ser ignorado, no momento em que a Europa e a América do Norte atingiam uma opulência até então desconhecida. Este desafio exigia evidentemente novas respostas, que não se podiam encontrar na tradição existente até aquele momento. A situação teológica e filosófica mudada convidava expressamente a buscar a resposta em um cristianismo que se deixasse regular pelos modelos da esperança, aparentemente fundados cientificamente, das filosofias marxistas.

A Estrutura Gnoseológica Fundamental da Teologia da Libertação

Esta resposta se apresenta totalmente diversa nas formas particulares de teologia da libertação, teologia da evolução, teologia política etc. Não pode, pois, ser apresentada globalmente. Existem, no entanto, alguns conceitos fundamentais que se repetem continuamente nas diferentes variações e exprimem intenções comuns de fundo.

Antes de passar aos conceitos fundamentais do conteúdo, é necessário fazer uma observação acerca dos elementos estruturais da teologia da libertação. Para tal, podemos retomar o que já afirmamos acerca da situação teológica mudada após o Concílio. Como já disse, leu-se a exegese de Bultmann e da sua escola como um enunciado da “ciência” sobre Jesus, ciência que devia obviamente ser considerada como válida. O “Jesus histórico” de Bultmann, entretanto, apresentava-se separado por um abismo (o próprio Bultmann fala de Graben, fosso) do Cristo da fé. Segundo Bultmann, Jesus pertence aos pressupostos do Novo Testamento, permanecendo, porém, encerrado no mundo do judaísmo. O resultado final dessa exegese consistiu em abalar a credibilidade histórica dos Evangelhos: o Cristo da tradição eclesial e o Jesus histórico apresentado pela ciência pertencem evidentemente a dois mundos diferentes. A figura de Jesus foi erradicada da sua colocação na tradição por ação da ciência, considerada como instância suprema; deste modo, por um lado, a Tradição pairava como algo de irreal no vazio, e, por outro, devia-se procurar para a figura de Jesus uma nova interpretação e um novo significado. Bultmann, portanto, adquiriu importância não tanto pelas suas afirmações positivas quanto pelo resultado negativo da sua crítica: o núcleo da fé, a cristologia, permaneceu aberto a novas interpretações porque os seus enunciados originais tinham desaparecido, na medida em que eram considerados historicamente insustentáveis. Ao mesmo tempo, desautorizava-se o Magistério da Igreja, na medida em que o consideravam preso a uma teoria cientificamente insustentável e, portanto, sem valor como instância cognoscitiva sobre Jesus. Os seus anunciados podiam ser considerados somente como definições frustadas de uma posição cientificamente superada.

Além disso, Bultmann foi importante para o desenvolvimento posterior de uma segunda palavra-chave. Ele trouxe à moda o antigo conceito de hermenêutica, conferindo-lhe uma dinâmica nova. Na palavra “hermenêutica” encontra expressão a ideia de que uma compreensão real dos textos históricos não acontece através de uma mera interpretação histórica; mas toda interpretação histórica inclui certas decisões preliminares. A hermenêutica tem a função de “atualizar”, em conexão com a determinação de dado histórico. Nela, segundo a terminologia clássica, se trata de uma “fusão dos horizontes” entre “então” [“naquele tempo”] e o “hoje”. Por conseguinte, ela suscita a pergunta: o que significa o então (“naquele tempo”), nos dias de hoje? O próprio Bultmann respondeu a esta pergunta servindo-se da filosofia de Heidegger e interpretou, deste modo, a Bíblia em sentido existencialista. Tal resposta, hoje, não apresenta mais interesse algum; neste sentido, Bultmann foi superado pela exegese atual. Mas permaneceu a separação entre a figura de Jesus da Tradição clássica e a idéia de que se pode e se deve transferir essa figura ao presente, através de uma nova hermenêutica.

Neste ponto, surge o segundo elemento, já mencionado, da nossa situação: o novo clima filosófico dos anos sessenta. A análise marxista da história e da sociedade foi considerada, nesse ínterim, como a única dotada de caráter “científico”; isto significa que o mundo é interpretado à luz do esquema da luta de classes e que a única escolha possível é entre capitalismo e marxismo. Significa, além disso, que toda a realidade é política e que deve ser justificada politicamente. O conceito bíblico do “pobre” oferece o ponto de partida para a confusão entre a imagem bíblica da história e a dialética marxista; esse conceito é interpretado com a ideia de proletariado em sentido marxista e justifica também o marxismo como hermenêutica legítima para a compreensão da Bíblia. Ora, segundo essa compreensão, existem, e só podem existir, duas opções; por isso, contradizer essa interpretação da Bíblia não é senão expressão do esforço da classe dominante para conservar o próprio poder. Gutierrez afirma: “A luta de classes é um dado de fato e a neutralidade acerca desse ponto é absolutamente impossível”. A partir daí, torna-se impossível até a intervenção do Magistério eclesiástico: no caso em que este se opusesse a tal interpretação do Cristianismo, demonstraria apenas estar ao lado dos ricos e dos dominadores e contra os pobres e os sofredores, isto é, contra o próprio Jesus, e, na dialética da história, aliar-se-ia à parte negativa.

Essa decisão, aparentemente “científica” e “hermeneuticamente” indiscutível, determina por si o rumo da ulterior interpretação do Cristianismo, seja quanto às instâncias interpretativas, seja quanto aos conteúdos interpretados. No que diz respeito às instâncias interpretativas, os conceitos decisivos são: povo, comunidade, experiência, história. Se até então a Igreja, isto é, a Igreja Católica na sua totalidade, que, transcendendo tempo e espaço, abrange os leigos (sensus fidei) e a hierarquia (Magistério), fora a instância hermenêutica fundamental, hoje tal instância passou a ser a “comunidade”. A vivência e as experiências da comunidade determinam agora a compreensão e a interpretação da Escritura. De novo, pode-se dizer, aparentemente de maneira muito científica, que a figura de Jesus, apresentada nos Evangelhos, constitui uma síntese de acontecimentos e interpretações da experiência de comunidades particulares, onde no entanto a interpretação é muito mais importante do que o acontecimento, que, em si, não é mais determinável. Essa síntese original de acontecimento e interpretação pode ser dissolvida e reconstruída sempre de novo: a comunidade “interpreta” com a sua “experiência” os acontecimentos e encontra assim sua “práxis”. Esta ideia, podemos encontrá-la em modo um tanto diverso do conceito de povo, com o qual se transformou a acentuação conciliar da idéia de “povo de Deus” em mito marxista. As experiências do “povo” explicam a Escritura. “Povo” torna-se, assim, um conceito oposto ao de “hierarquia” e em antítese a todas as instituições indicadas como forças da opressão.

Afinal, é “povo” quem participa da “luta de classes”; a “igreja popular” acontece em oposição à Igreja hierárquica. Por fim, o conceito de “história” torna-se instância hermenêutica decisiva. A opinião, considerada cientificamente segura e irrefutável, de que a Bíblia raciocine em termos exclusivamente de história da salvação, e, portanto, de maneira antimetafísica, permite a fusão do horizonte bíblico com a idéia marxista da história que procede dialeticamente como autêntica portadora de salvação; a história é a autêntica revelação e, portanto, a verdadeira instância hermenêutica da interpretação bíblica. Tal dialética é apoiada, algumas vezes, pela pneumatologia. Em todo caso, também esta última, no Magistério que insiste em verdades permanentes, vê uma instância inimiga do progresso, dado que pensa “metafisicamente” e assim contradiz a “história”. Pode-se dizer que o conceito de história absorve o conceito de Deus e de revelação. A “historicidade” da Bíblia deve justificar o seu papel absolutamente predominante e, portanto, deve legitimar, ao mesmo tempo, a passagem para a filosofia materialista-marxista, na qual a história assumiu a função de Deus.

III. Conceitos Fundamentais da Teologia da Libertação

Com isto, chegamos aos conceitos fundamentais do conteúdo da nova interpretação do Cristianismo. Uma vez que os contextos nos quais aparecem os diversos conceitos são diferentes, gostaria de citar alguns deles, sem a pretensão de esquematizá-los. Comecemos pela nova interpretação da fé, da esperança e da caridade. Com relação à fé, por exemplo, J. Sobrino afirma: a experiência que Jesus tem de Deus é radicalmente histórica. “A sua fé converte-se em fidelidade”. Por isso Sobrino substitui fundamentalmente a fé pela “fidelidade à história” (fidelidad a la historia, 143-144). Jesus é fiel à profunda convicção de que o mistério da vida do homem… é realmente o último… (144). Aqui se produz aquela fusão entre Deus e história que dá a Sobrino a possibilidade de conservar para Jesus a fórmula de Calcedônia, ainda que com um sentido completamente mudado; pode-se ver como os critérios clássicos da ortodoxia não são aplicáveis à análise dessa teologia. Ignacio Ellacuria, na capa do livro sobre este assunto, afirma: Sobrino “diz de novo… que Jesus é Deus, acrescentando, porém, imediatamente, que o Deus verdadeiro é somente aquele que se revela historicamente em Jesus e nos pobres, que continuam a sua presença. Somente quem mantém unidas essas duas afirmações, é ortodoxo…”.

A esperança é interpretada como “confiança no futuro” e como trabalho pelo futuro; com isso ela é subordinada novamente ao predomínio da história das classes. “Amor” consiste na “opção pelos pobres”, isto é, coincide com a opção pela luta de classes. Os teólogos da libertação sublinham com força, diante do “falso universalismo”, a parcialidade e o caráter partidário da opção cristã; tomar partido é, segundo eles, requisito fundamental de uma correta hermenêutica dos testemunhos bíblicos. Na minha opinião, aqui se pode reconhecer muito claramente a mistura entre uma verdade fundamental do Cristianismo e uma opção fundamental não cristã que torna o conjunto tão sedutor: o sermão da montanha é, na verdade, a escolha por parte de Deus a favor dos pobres. Mas a interpretação dos pobres no sentido da dialética marxista da história e a interpretação da escolha partidária no sentido da luta de classes é um salto “eis allo genos” (grego: para outro gênero), no qual as coisas contrárias se apresentam como idênticas.

O conceito fundamental da pregação de Jesus é o de “reino de Deus”. Este conceito encontra-se também no centro das teologias da libertação, lido, porém, no contexto da hermenêutica marxista. Segundo J. Sobrino, o reino não deve ser compreendido espiritualmente, nem universalmente, no sentido de uma reserva escatogicamente abstrata. Deve ser compreendido em forma partidária e voltado para a práxis. Somente a partir da práxis de Jesus, e não teoricamente, é possível definir o que seria o reino: trabalhar na realidade histórica que nos circunda para transformá-la no reino (166). Aqui ocorre mencionar também uma idéia fundamental de certa teologia pós-conciliar que impulsionou nessa direção. Muitos apregoaram que, segundo o Concílio, se deveriam superar todas as formas de dualismo: o dualismo de corpo e alma, de natural e sobrenatural, de imanência e transcendência, de presente e futuro. Após o desmantelamento desses dualismos, resta apenas a possibilidade de trabalhar por um reino que se realize nesta história e em sua realidade político-econômica. Mas justamente dessa forma deixou-se de trabalhar pelo homem de hoje e se começou a destruir o presente, a favor de um futuro hipotético: assim produziu-se imediatamente o verdadeiro dualismo.

Neste contexto, gostaria de mencionar também a interpretação, impressionante e definitivamente espantosa, que Sobrino dá da morte e da ressurreição. Antes do mais, ele estabelece, contra as concepções universalistas, que a ressurreição é, em primeiro lugar, uma esperança para aqueles que são crucificados; estes constituem a maioria dos homens: todos aqueles milhões aos quais a injustiça estrutural se impõe como uma lenta crucifixão (176 e seguintes). O crente, no entanto, participa também do senhorio de Jesus sobre a história, através da edificação do reino, isto é, na luta pela justiça e pela libertação integral, na transformação das estruturas injustas em estruturas mais humanas. Esse senhorio sobre a história é exercitado ao se repetir o gesto de Deus que ressuscita Jesus, isto é, dando novamente vida aos crucificados da história (181). O homem assumiu o gesto de Deus, e aqui a transformação total da mensagem bíblica se manifesta de maneira quase trágica, se se pensa em como essa tentativa de imitação de Deus se desenvolveu e se desenvolve ainda.

Gostaria de citar apenas alguns outros conceitos: o êxodo se transforma em uma imagem central da história da salvação; o mistério pascal é entendido como um símbolo revolucionário e, portanto, a Eucaristia é interpretada como uma festa de libertação no sentido de uma esperança político-messiânica e da sua práxis. A palavra redenção é substituída geralmente por libertação, a qual, por sua vez, é compreendida, no contexto da história e da luta de classes, como processo de libertação que avança. Por fim, é fundamental também a acentuação da práxis: a verdade não deve ser compreendida em sentido metafísico; trata-se de “idealismo”. A verdade realiza-se na história e na práxis. A ação é a verdade. Por conseguinte, também as ideias que se usam para a ação, em última instância são intercambiáveis. A única coisa decisiva é a práxis. A práxis torna-se, assim, a única e verdadeira ortodoxia. Desta forma, justifica-se um enorme afastamento dos textos bíblicos: a crítica histórica liberta da interpretação tradicional, que aparece como não científica. Com relação à tradição, atribui-se importância ao máximo rigor científico na linha de Bultmann. Mas os conteúdos da Bíblia, determinados historicamente, não podem, por sua vez, ser vinculantes de modo absoluto. O instrumento para a interpretação não é, em última análise, a pesquisa histórica, mas, sim, a hermenêutica da história, experimentada na comunidade, isto é, nos grupos políticos, sobretudo dado que a maior parte dos próprios conteúdos bíblicos deve ser considerada como produto de tal hermenêutica comunitária.

Quando se tenta fazer um julgamento geral, deve-se dizer que, quando alguém procura compreender as opções fundamentais da teologia da libertação, não pode negar que o conjunto contém uma lógica quase incontestável. Com as premissas da crítica bíblica e da hermenêutica fundada na experiência, de um lado, e da análise marxista da história, de outro, conseguiu-se criar uma visão de conjunto do cristianismo que parece responder plenamente tanto às exigências da ciência, quanto aos desafios morais dos nossos tempos. E, portanto, impõe-se aos homens de modo imediato a tarefa de fazer do Cristianismo um instrumento de transformação concreta do mundo, o que pareceria uní-lo a todas as forças progressistas da nossa época. Pode-se, pois, compreender como esta nova interpretação do Cristianismo atraia sempre mais teólogos, sacerdotes e religiosos, especialmente no contexto dos problemas do terceiro mundo. Subtrair-se a ela deve necessariamente aparecer aos olhos deles como uma evasão da realidade, como uma renúncia à razão e à moral. Porém, de outra parte, quando se pensa o quanto seja radical a interpretação do Cristianismo que dela deriva, torna-se ainda mais urgente o problema do que se possa e se deva fazer frente a ela [até aqui Joseph Ratzinger].

À guisa de comentário[1], parece oportuno salientar os seguintes pontos:

1) A Teologia da Libertação não é um novo tratado teológico ao lado de outros já existentes, mas é uma nova interpretação do Cristianismo, que revira radicalmente as verdades da fé, a constituição da Igreja, a liturgia, a catequética e as opções morais.

2) Todos os valores e toda a realidade são consideradas do ponto de vista político. Uma teologia que não seja essencialmente política é encarada como fator de conservação dos opressores no poder.

3) A dificuldade de se perceber esse caráter subversivo da Teologia da Libertação está, em grande parte, no fato de que os seus arautos continuam a usar a linguagem ascética e dogmática da Igreja, embora em chave nova. Isto dá aos observadores a impressão de que estão diante do patrimônio da fé acrescido de algumas afirmações religiosas que não podem ser perigosas.

4) A gravidade da Teologia da Libertação não é suficientemente avaliada; não entra em nenhum esquema de heresia até hoje existente.

5) O cristão não pode ser, de forma alguma, insensível à miséria dos povos do Terceiro Mundo. Todavia, para acudir cristãmente a tal situação, não lhe é necessário adotar um sistema de pensamento que é anticristão como a Teologia da Libertação; existe a Doutrina Social da Igreja, desenvolvida pelos Papas desde Leão XIII até João Paulo II de maneira cada vez mais incisiva e penetrante. Se fosse posta em prática, eliminaria graves males de que sofrem os homens, sem disseminar o ódio e a luta de classes [Até aqui o texto transcrito de F. Aquino. Teologia da libertação, p. 9-22].

Refletindo[2]

Penso que uma das maiores provas do erro da “teologia” da libertação é que ela, que tanto enaltece a “práxis”, na verdade defende algo que é impossível na prática, ou seja, um “paraíso na terra” onde todos seriam felizes, caso os “pobres” efetivamente tivessem o poder nas mãos. Tal concepção não leva em conta o fato de que os homens são pecadores, e que a pobreza material ou a condição de “oprimidos” não os torna santos nem desapegados – e, portanto, não os torna capazes de renunciar ao proveito pessoal em função de um proveito comunitário onde tudo seria de todos. A história comprova a impossibilidade de realizar tal ideal na prática.

O “pobre” que se vê no poder passa a agir da mesma forma que aqueles a quem, antes, censurava – e, geralmente, age até de forma mais tirana e cruel. Uma verdadeira atitude de caridade e desapego só existe nos santos, capazes de renunciar totalmente à própria vontade e ao próprio interesse em função, precisamente, de uminteresse sobrenatural (a pérola preciosa do Evangelho), que é Deus e a vida eterna em união com Deus. Ninguém renuncia aos bens mundanos quando justamente estes são exaltados e valorizados, mas somente quando valoriza e prioriza outra coisa diferente deles.

A teologia da libertação, ao menosprezar a primazia da vida eterna e o conceito transcendente de Deus, só faz dificultar – se não tornar impossível – um desapego e solidariedade autênticos. Qualquer iniciativa em defesa dos direitos humanos que precise ser defendida em detrimento dos valores sobrenaturais, como se estes fossem prejudiciais ao homem, não tem por fonte um verdadeiro amor ao homem.

Para aprofundamento:

AQUINO, Felipe. Teologia da libertação. 2ª ed. Lorena: Cléofas, 2003.

BETTENCOURT, Pe. Estêvão Tavares. Curso de Doutrina Social da Igreja. Rio de Janeiro: Mater Ecclesiae, 1992, p. 197-204 (há ainda o livrete do mesmo autor com o título Teologia da libertação).

CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ. Instrução Libertatis nuntius (1984) e Instrução Libertatis conscientia (1986). Disponível, respectivamente, em:

http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_19840806_theology-liberation_po.html

http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_19860322_freedom-liberation_po.html

RANGEL, Paschoal. Teologia da libertação: juízo crítico e busca de caminhos. 2ª ed. Belo Horizonte: O Lutador, 1989 (um dos mais bem documentados estudos brasileiros sobre o assunto

 

[1] Comentários de D. Estêvão Bettencourt, OSB (Nota de Refletindo).

[2] Reflexão de Margarida Hulshof, revisora de Refletindo.


Fonte: http://blog.comshalom.org/carmadelio



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